Eram quatro e meia da manhã, em
São Bartolomeu, quando a luz da cozinha se acendeu! O Tarzan há muito que já estava
acordado. Com pouco mais de um ano de idade, este Braco Francês já tinha uma
enorme paixão pela caça, o que lhe permitia saber que hoje era dia de caça. O
ano de 2011 não estava a ser abençoado com as tão esperadas chuvas, o que fazia
com que aquela madrugada do 16 de Novembro estivesse bastante seca e muito
fria. As temperaturas a rondar os zero graus centígrados para ele não constituíam
nenhuma adversidade, com a energia que tinha e a vontade de saltar de pedra em
pedra atrás das perdizes de São Miguel do Pinheiro nem sentia o frio que estava.
A luz quem a acendeu foi o seu dono, o João. Também ele estava ansioso por ver
a sua “fera” percorrer os terrenos de pinheiros e cascalho solto atrás das
bravas perdizes! O Tarzan foi o seu primeiro cão de caça. Ao longo da sua vida,
demasiadamente preenchida pela actividade profissional, nunca tivera a hipótese
de ter um cão de caça. Possibilidade teve, mas nunca o quis por não ter tempos
livres para o treinar e caçar com ele como agora o faz.
O farnel estava feito, as botas,
a arma, os cartuchos e a boina já estavam na bagageira do Q5. Era altura de ir
ter com o seu amigo. Do canil, construído propositadamente para receber tão
digno exemplar de cão de caça, entoavam os latidos de alegria que o Tarzan emitia.
Estava radiante! Mesmo antes de acender a luz do pátio que dá para o canil já
lhe via os seus olhos da cor de um fardo de palha em plena planície alentejana
nos tórridos dias de Agosto. O Tarzan é uma réplica autêntica do seu pai, o
Morante. Com uma pelagem castanha salpicada com pintas brancas como se tivesse saído
de uma tela de Picasso, o Tarzan é o orgulho do seu dono. Tomara que a destreza
do seu dono enquanto atirador fosse idêntica à do Tarzan enquanto caçador, mas
nem todos podemos ter esse dom. Naquela dupla era, seguramente, o Tarzan o
líder. Ainda cachorro já ele parava o espantalho, cinco ou seis penas de perdiz
seguras por um fio de pesca a uma cana do valado, com que o seu dono lhe
treinava as paragens. As suas paragens eram e são qualquer coisa de
extraordinário. Os seus olhos, durante uma paragem, fazem lembrar os olhos do “Avispado”
na hora de colher Paquirri, em Pozoblanco.
Eram cinco da manhã, estava na
hora de iniciar a viagem, mas mesmo assim o João permitia, como sempre, ao seu
fiel amigo as últimas corridas no quintal. Desta forma podia aliviar a bexiga e
não fazer asneiras dentro do Q5. Depois das necessidades feitas era altura de
iniciar a viagem. O Tarzan tinha alguns privilégios que nem todos tinham,
como por exmplo, sentar-se no banco do pendura do Q5 em cima do seu cobertor. O João ensinou-o
a subir para o Q5 com um único salto, para não riscar a pintura metalizada da
sua “bomba”! Lá estavam eles, o João ao volante e o Tarzan como seu co-piloto.
Tinham pela frente duas horas e meia de viagem até às terras de São Miguel do
Pinheiro, onde o restante grupo de amigos os esperava. Todos eles tinham ido no
dia anterior menos o João, que pela sua profissão de médico tinha sido obrigado
a fazer banco, na vila de Gavião, até mais tarde.
Depois de muito caminhar, de uma
e outra festa passada no pêlo luzidio do Tarzan, de uma ou outra palavra de
conforto, e pela degustação de uma (uma cada um) suculenta empadinha da Ponte
de Sôr chegaram à sede da zona de caça às 07h30, conforme o João previa. Os
amigos, de pequeno-almoço tomado, esperavam-nos. Depois dos cumprimentos
feitos, de se aquecerem na fogueira de lenha de azinho, pois o frio era
realmente muito, e do sorteio das posições que cada um ia ocupar durante a
caçada em linha, no caso dos batedores, ou da porta, no caso das esperas, era
altura de seguirem para a zona da caçada.
O João ia agora na carrinha com o
Jacinto, o Q5 não tinha pedalada para aqueles terrenos, e o Tarzan na roulotte
com o seu pai, Morante, com o Maximus e com o Paquirri (também apelidado de “fofa”
devido à sua maravilhosa humildade).
Colocados na posição sete, tinha
sido esse o número que lhe coube em sorte, e depois da linha estar toda
composta iniciou-se a batida. O Tarzan, entusiasmado com toda aquela liberdade
e provocado pelo odor abundante das perdizes e coelhos, ausentou-se mal o João
lhe retirou a coleira. Passados cinco minutos e depois de muito chamar pelo
Tarzan, lá vinha ele, com o curto rabo apontando para o chão e as orelhas
murchas de quem sabia que tinha feito asneira. Vais apanhar seu malandro,
gritava-lhe o dono, sabendo que era incapaz de lhe tocar com um único dedo.
Feitas as pazes, seguem de novo, agora juntos. O Tarzan caçava como um cão
velho e batido em terrenos dobrados como aqueles. Ora para a direita, ora para
a esquerda, ia percorrendo, ao comando da voz do seu dono, o terreno que lhes
coubera em sorte. Não foi preciso esperar muito para, percorridos pouco mais de
cem metros, o Tarzan ficar paradinho com um coelho! O João não sabia o que era
mas uma perdiz brava das que por ali andavam não era de certeza pois não
aguentava uma paragem daquelas, ainda por cima muito longe das portas. À voz de
incentivo do seu dono o Tarzan lança-se sobre o desconhecido. Do outro lado da
copa do pinheiro manso sai um coelho. Para quem conhece aquela dupla, não é
preciso muita ginástica mental para saber qual foi o desfecho do lance. Dois
tiros de baschieri-pellagri e lá vai
o coelho sem um único bago de chumbo. Mais um que se vai embora, pensava o João.
Isto é uma vergonha, como é que eu errei este coelho, perguntava o João ao
Tarzan, como que a desculpar-se pelo sucedido.
Estamos a começar bem estamos, lá
ia gesticulando o João. O Tarzan já estava noutra. Era completamente viciado na
caça. O seu nariz dizia-lhe que mais à frente havia de ir a “pés” um bando de
perdizes. Mas não foi uma perdiz que ele encontrou, a poucos metros dali numa “limpa”
de pasto seco, foi uma lebre. Este não posso falhar, pensava o João, enquanto o
Tarzan aguentava a paragem a poucos metros dele. Passo após passo, o João
aproximou-se do Tarzan. O cão estava completamente parado, de mão direita no ar
como é hábito neste tipo de cães. O Tarzan era o único que sabia que era uma
lebre. A lebre é o troféu de caça preferido do João. Após sinal do João, o
Tarzan voou para onde sabia, tinha um olfacto de outro mundo e nunca se
enganava, estar a lebre. Assim que a viu sair o João até tremeu, depois de um
primeiro tiro fora do alvo, foi ao segundo que a derrubou. O Tarzan quase que a
apanhava antes do primeiro tiro! Depois de uma cambalhota e meia lá vinha ela
na boca do Tarzan! Viram isto, perguntava euforicamente o João aos seus
companheiros de linha. É uma lebre e foi o Tarzan que a parou, gritava ele. “Boa
Tarzan!”. És o maior, gritava o João enquanto lhe fazia festas no seu macio
pêlo. De lebre pendurada à cintura lá iam eles novamente. Até estou admirado
como é que não errei esta “menina”, pensava o João. Não demorou um minuto e lá
ia outro coelho à frente do Tarzan. Este não aguentou a paragem. O João ainda
atirou um tiro mas se não o tivesse feito o resultado seria o mesmo. Lá ia o
Tarzan atrás dele, demorou mais de dez minutos até regressar. Ao dobrar da
colina lá vinha ele, ofegante de tanto ter corrido atrás do coelho. Vá Tarzan,
tira lá outro coelho ao dono, incentivava-o o João. A esta altura já estavam a
cerca de quatrocentos metros das portas. O João, como ia sensivelmente a meio
da linha, tinha que esperar para que os seus companheiros que faziam as pontas
se adiantassem. Se não o fizessem as perdizes, sabidas como aquelas eram, sairiam
para fora da zona a percorrer entre a linha e as portas. Depois da linha se
recompor, voltaram a andar, agora mais devagar pois as perdizes ao sentirem os
caçadores das portas tentam esconder-se na vegetação. Não demorou muito tempo,
e lá estava o Tarzan novamente parado! Lá foi o João pé ante pé até ele. Desta
vez não lhe deu ordem de avanço, passou para a frente do Tarzan e com um leve
toque, com o pé, na baixa esteva fez com que a peça de caça saísse. Era um
enorme perdigão! Pum! Lá estava ele no chão! “Oiça, eu já não falho uma peça de
caça!”. Viu isto, perguntava ele eufórico ao seu colega de caça e amigo
Jacinto. Esse coitadinho atravessou-se à frente de um baguinho de chumbo, retorquiu
o Jacinto. A boa disposição reinava entre eles. “Esse cão vê-se logo que é
filho do meu Morante!”. Se não fosse eu a dar-lhe um cão nunca na vida você caçava
um perdigão desses, gritava em tom de brincadeira o Jacinto. Também o Jacinto
já trazia um casal de perdizes e cinco coelhos à cintura. O Maximus, o Morante
e o Paquirri tinham-se encarregado de lhas levantar. Dali até às portas já não
viram mais nenhuma peça de caça dentro da distância de tiro. Quando chegaram às
portas puderam constatar aquilo que já vinham pensando. Tinha sido uma
excelente caçada! Havia muita caça naquela mancha.
Depois desta batida seguiram-se
mais duas. O João e o Tarzan ainda conseguiram caçar mais três perdizes e sete
coelhos, quase todos parados pelo Tarzan. Não vale a pena relatar o número de peças
de caça que o João errou porque o que se pretende com esta história é,
essencialmente, descrever a aptidão e destreza caçadora do Tarzan. Vai ser, sem
sombra de dúvidas, um excelente cão de caça!
Depois da caça dividida e
devidamente limpa foi altura de comer o bom bacalhau com grão acompanhado de um
tinto alentejano em São João dos Caldeireiros.
A esta hora já o Tarzan dormia no
banco do Q5!
Um abraço ao João e ao Tarzan!
André Pinto
Boa narrativa, apenas um pormenor a salientar: não gosto do nome de Tarzan... mas que padrinho me saíste! Com tantos nomes giros que existem!
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